Uma confissão:
Confesso que nos anos 50, quando andava embarcado, servindo ociosos a bordo de luxuosos navios de cruzeiros, já me interessava por estes assuntos. Já na altura tinha este meu espírito forte e prático, que durante o dia resolvia as questões profissionais e que à noite era infatigável a estudar.
Na altura sofria da vertigem do Pi. Esse número, sempre incompleto, nunca terminado, fascinava-me, seduzia-me, provocava-me. Imaginava-me a viajar por ele, cruzando todos os dígitos que o formavam. Começava em 3.141592… e continuava por todos os números e sequências de números já escritos ou ainda por sonhar. Era a fonte e encerrava tudo num rácio entre uma circunferência e o seu diâmetro. Representava o universo condensado, todo o passado e todos os futuros, todos os lugares e todos os heróis, todas as batalhas e todos os poemas, codificados em frios números que construíam sequências inesgotáveis, sempre diferentes, nunca repetidas. Eram impessoais, indiferentes, intemporais.
Uma noite, após termos atracado, e em que eu, transitoriamente liberto dos meus afazeres profissionais, estava bem mergulhado no estudo, fui interrompido por insistentes pancadas na porta.
O mediano e indiferente sujeito que apareceu, mostrou-me uma caixa que parecia feita de areia molhada. Apresentou-se como sendo da família Borges, praticando um espanhol colorido, vulgar entre os sul-americanos da zona do rio da prata. Tinha aquele olhar encovado, raiado, de quem quase não dorme e o físico extenuado de quem padece de carências prolongadas. Nunca dele soube muito mais.
Mas a caixa que estava disposto a vender-me encerrava um segredo, dizia ele.
Senti que devia estar a ser o alvo de algum embuste, de alguma trapaça, mas curioso e seguro de mim, resolvi ouvi-lo mais.
A caixa encerrava o Pi! Nem mais!
Escusado será dizer que a comprei por uma ninharia, e que depois passei horas e horas a contemplá-la enquanto os dígitos eram produzidos. Se a voltasse a abrir, os dígitos recomeçavam do início. Se queria ver mais para a frente, tinha de estar a olhar para ela. A busca do inacessível consumia-me.
Comecei a ficar escravizado. A perder horas de sono e refeições. E percebi a trapaça. A caixa era verdadeira! O fascínio era a prisão. Precisava de me libertar. Se a guardava numa gaveta, depois não resistia à tentação de voltar lá. Pensei: No próximo porto, se ainda tiver forças, deixo-a lá. Mas não deixei. Tive medo de a perder, de nunca mais poder ter acesso aos segredos profundos. Olhava à volta e ninguém se interessava por conhecer o Pi, por aceder ao Pi. Estava só e incompreendido.
Olhei novamente para a caixa e o cansaço ganhou. A minha alma cedeu ao impiedoso e inexorável. A visão platónica de um mundo ideal onde tudo decorre de acordo com leis puras e perfeitas dissipou-se, sucumbindo à tortura das noites mal dormidas e das refeições negligenciadas. Vi a caixa como uma coisa chata e sem interesse. Apenas produzia números, números e mais números, enjoativos, monótonos, sem interesse prático ou hipótese de serem aproveitados.
Aproveitei esses momentos de delírio lúcido e parti a caixa. Joguei pedaços ao mar, outros no lixo, e os últimos dois ou três consegui que fossem incinerados na caldeira.
Que alívio. Dou graças a mim mesmo por este meu espírito forte e prático.
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