Suspiria


Entrei no IST em 1981/82. No primeiro dia, cheguei mais cedo, e já lá estava o Fernando, à espera da primeira aula – de Matemática, com o Campos Ferreira.

O Fernando sofria de parkinsonismo, e tinha uns delírios, mas também uma mente brilhante. No primeiro ano, desenvolveu uma teoria que punha a teoria da relatividade de lado. Apresentou-a ao nosso melhor professor – o Moura Ramos, professor de Química – que o aconselhou a estudar mais e rever as fórmulas que tinha escrito. Eu também fui um dos revisores, mas aquilo ultrapassava-me – talvez em paciência.

Entre outras substâncias, o Fernando tomava Leponex – uma droga que só existia no Hospital Júlio de Matos e nos hospitais centrais (o Lexotan e o Xanax [inexistente na altura] eram para meninos de coro) – que o fazia cair para o chão num minuto. Um dia o Fernando disse-me: “acabei com a medicação, deitei os comprimidos todos pela pia abaixo”. Não passou uma semana, começou a tremer, e, pouco depois, já não conseguia escrever, nem pegar numa esferográfica. Começou, inclusive, a ter tendências suicidas, quando guiava na autoestrada.

Eu era um fã de cinema. Durante dois anos toquei fliscorne (um quase trompete) na banda filarmónica da Incrível Almadense e tinha livre acesso à sala de cinema da associação. Entre outras loucuras, vi a “Laranja Mecânica” quatro vezes no mesmo dia, em sessões contínuas. Vi também um filme/documentário, de culto, do Barbet Schroeder, “Idi Amin Dada” (aconselho-vos a lerem a saga da realização e distribuição deste filme), a “Árvore dos Tamancos” do Ermanno Olmi, entre outras belezas da cinematografia internacional. Em resumo, passava a vida no cinema.

O Fernando não deixou morrer essa minha paixão. Era, também, um fã de cinema, e fui ver, com ele, os filmes mais loucos ao City Cine, ao Quarteto, e em salas improvisadas na noite de Lisboa: “Saló”, “Teorema”, “Irei Como um Cavalo Louco”…

Mais tarde, quando o Fernando desapareceu, continuei a frequentar mais o Quarteto do que as aulas do Técnico.

Mas um dia, ele surgiu com uma história estranha. Tinha ido ver o “Suspiria”. Lembro-me de ele ter referido as cenas das facadas, do sangue que parecia tinta vermelha, tão falso como nos filmes de cowboys dos anos 60, das cenas quase teatrais, a lembrar imitações primárias do Manoel de Oliveira…

Mas o “Suspiria” tornou-se um filme de culto. A atriz principal é a Jessica Harper, ainda novinha. A Jessica Harper que eu vi no “Stardust Memories” do Woody Allen, com a Charlotte Rampling, e que, quando o Woody Allen a convida, ao telefone, para ir dormir com ele, ela responde que não pode porque está com herpes… nunca mais me esqueci: nem dela, nem do herpes. Mas também a vi no filme fantástico do Brian de Palma, “O Fantasma do Paraíso” – estonteante -, e no “Inserts”, passado em tempo real, com o Richard Dreyfuss, e um piano branco, e uma garrafa de whisky, sobre um tipo que filmava intercalados em grande plano, para filmes pornográficos, no tempo do Clark Gable (que aparece, como personagem, no filme).

Pois… o “Suspiria” passou ontem, 5ª feira, na RTP2, numa cópia digital restaurada, a partir de uma película em mau estado e com fotogramas em falta, fiel à cor saturada original. Vale a pena ver. O Fernando tinha razão: as facadas, o sangue, e a encenação são fraquinhas, mas ainda assim, vale a pena ver. E depois vejam o “Stardust Memories” e, principalmente “O Fantasma do Paraíso”.

Vi o Fernando, muitos anos mais tarde, no sítio onde morava, muito longe de Lisboa. Congratulei-me por ainda estar vivo. Viva a vida!


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