Abril de 74

Umas semanas mais tarde, o meu pai voltou definitivamente para casa. Deixou a vida de embarcadiço e foi trabalhar para a Lisnave, como chefe de serviços. Todos os meses viajava para fora, para fazer um orçamento de reparação de um navio que viria a ser reparado mais tarde. No dia 25 de abril de 74, o meu pai chegou à 1h da manhã ao aeroporto, vindo de Londres, de mais um orçamento. De manhã, por volta das 8h, a minha irmã Carolina saiu para a escola, enquanto eu ainda dormitava. Entrávamos os dois à mesma hora na Escola Preparatória Dom António da Costa, mas eu – que construía uma preguiça crescente desde o início do ano – saía de casa só no último momento, para dormir o máximo que podia sem chegar atrasado à escola.

A minha irmã desceu os degraus, do segundo andar onde morávamos e, no primeiro andar, o vizinho Laranjeira abriu a porta e pediu-lhe para chamar o pai. A minha irmã – respondona desde que nasceu – perguntou-lhe porquê. Mas o vizinho Laranjeira – dono de uma espingardaria em Almada – era mais respondão do que ela e obrigou-a a subir.

A minha irmã corrigiu-me, entretanto: “O vizinho Laranjeira disse-me que eu não podia ir à escola porque tinha havido um golpe de estado. Eu, como não fazia a mínima ideia o que era um golpe de estado, refilei com ele a dizer que ia sim. aí, ele insistiu para ir buscar os meus pais, e aí, sim, a história é como tu contas”.

Foi a minha mãe que foi à porta e ouviu a notícia: “houve um golpe de estado, é melhor os seus filhos ficarem em casa”. Recebi a notícia com uma felicidade sem par: podia continuar na cama, não tinha que me levantar. Mas pouco depois, estávamos todos à frente de TV e a ouvir rádio à espera de notícias.

Foram uns dias estranhos: as notícias eram apresentadas por homens com barba e sem gravata. No dia 25 passou música em cima da mira técnica, estámos às escuras, mas sentia-se uma esperança enorme que foi morrendo com o passar dos anos.

No verão quente de 75, o meu pai teve que ir a Copenhaga para mais um orçamento, e pediu-me para ir a Cacilhas buscar um táxi. Não tínhamos telefone – a atribuição de telefones novos esteve bloqueada em Almada durante anos – e toda a comunicação era feita a pé: pelos meus pés.

Era meio dia, e lembro-me que fiz birra, não quis ir. Não me lembro dos motivos. O meu pai ficou chateado comigo, na altura, mas pegou na mala e foi a pé até Cacilhas para apanhar um táxi para o aeroporto. Mais tarde, confessou-me que se sentiu aliviado por eu me ter recusado.

Cacilhas estava tomada pelo COPCON. Havia militares com metralhadoras por todo o lado. O meu pai entrou num táxi, com a mala de viagem, e saiu a caminho de Lisboa. Tinha andado talvez vinte metros quando alguém gritou: “vai ali um a fugir”. Os militares apontaram as metralhadoras e mandaram parar o táxi…

Somos um país de brandos costumes? Ou somos uns tipos sensatos e conscientes? O que eu sei é que não dispararam sobre o meu pai e, depois dele explicar o que ia fazer, deixaram-no ir embora.

Se tivesse sido de outra forma, talvez eu me tivesse tornado jornalista n’O Diabo, e, em vez do Paulo Portas – um puto da minha idade -, teria sido eu o presidente do CDS, ou dum movimento qualquer mais à direita.


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