Primeiro de maio de 1973. Saí da escola – a preparatória Dom António da Costa, em Almada – e, do outro lado da estrada, o descampado seco e ocre – onde hoje é o Fórum Romeu Correia -, por entre as poucas papoilas e malmequeres, estava salpicado por folhetos de papel branco, de tamanho A6, com conteúdos subversivos, mas disso eu não me apercebi na altura.
Havia quatro versões diferentes; eu era um colecionador – ainda não me livrei completamente desse hábito – e recolhi-as todas. Já não tenho os folhetos, não vos posso mostrá-los, mas diziam algo do tipo “independência das colónias” ou “libertação das colónias”.
“As colónias são nossas”, pensei eu, na minha ingenuidade de pouco mais de dez anos e meio, num tempo em que a televisão era uma uma atividade artesanal, os automóveis só para os ricos, e nós jogávamos à bola, ao alho, e ao berlinde à vontade, na rua, enquanto as ovelhas pastavam numa calmaria silenciosa, nos montes em frente a casa, logo ali.
Meti os folhetos na mochila, que era uma pasta de cabedal pendurada, com alças, nos ombros, e segui para casa com os meus colegas.
O percurso até casa eram cerca de novecentos metros. Pelo caminho, iam ficando alguns colegas, e o Aníbal, que morava na Rua Comandante António Feio, era o único que me acompanhava, àquela hora antes do almoço, quando se ouviu um estrondo enorme, vindo de Lisboa.
“Foi o meu irmão”, disse ele, “foi pôr uma bomba a Lisboa”. Bombas, folhetos subversivos, eram só novidades para mim. O Aníbal era mais velho que eu um ano, e de uma família com dificuldades. O irmão já tinha sido preso por motívos políticos e nunca lhe vi o pai. Era repetente, e a professora de português – a diretora de turma, Lúcia Farrusco – tinha-me incumbido de lhe dar explicações de matemática, o que eu fazia uma tarde por semana. Morava num prédio velho que já não existe numa rua de Cacilhas, num primeiro andar, cujo acesso era feito por uma escada de pedra exterior e muito estreita.
Um dia, o Aníbal vendeu-me uma caneta de ouro por vinte escudos. Tirei o dinheiro do mealheiro e levei-lho no dia seguinte. A caneta era mesmo bonita, nunca tinha tido nada assim. Levei-a para a escola e passei a escrever com ela nas aulas. Numa aula de português, enquanto escrevia, o Viana levantou-se e tirou-me a caneta da mão. Reclamei. a professora interveio e esclareceu as coisas. Aníbal tinha roubado a caneta ao Viana e vendeu-ma. Ficou determinado que o Aníbal me deveria devolver o dinheiro. Na aula seguinte, a professora perguntou-me se ele já me tinha devolvido os vintes escudos. Eu disse que sim, mas nunca os recebi.
Cheguei a casa e mostrei os folhetos sobre a libertação das colónias à minha mãe. O meu pai era embarcado e só vinha a casa de seis em seis semanas. A minha mãe era uma miudinha, com ar ingénuo, tinha estudado num colégio de freiras, e tinha que aguentar a casa, comigo e mais os meus três irmãos, na ausência do meu pai. Mostrei-lhe os folhetos e ela disse: “deita já isso fora”. A reação foi tão brusca e exaltada que eu fiz-lhe a vontade. Não foi logo, porque eu queria guardar aqueles achados tão estranhos, provocatórios e incompreensíveis, e ainda os tive no quarto até ao fim do dia. Mas ao cair da noite fui pô-los no balde do lixo.
Nesse dia, enquanto jantávamos, ouviu-se o estrondo de mais uma bomba que rebentou em Lisboa.
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