1923, janeiro
O padre vinha a descer a rua de bicicleta, sem os pés nos pedais para andar mais depressa. Com a batina ao vento e os chuviscos a dar na cara. Ao passar a curva começou a chamar putas a todas as mulheres da aldeia: “puta, puta, puta… puta…”
1934, maio
O padre pediu a bicicleta ao meu avô. O meu avô não lha emprestou. “A ti não te empresto porque és padre.” O meu avô ainda tinha presente a cena em que o padre tinha chamado putas às mulheres todas da aldeia.
1937, abril
O padre não batizou o meu pai porque o meu avô não lhe tinha emprestado a bicicleta.
1942, outubro
A procissão subiu a rua da aldeia até ao centro rodoviário (um cruzamento com um poço). Os Grossos e os Bechigas apedrejaram a prossição que nunca mais voltou. Passaram a dar a volta na curva onde o padre chamou putas às mulheres da aldeia.
1945, julho
O João faltou ao exame da 2ª classe porque o burro estava coxo.
1946, setembo
O Zé Grosso recebeu uma carta da Argentina. Tinham-lhe arranjado trabalho. A miséria que grassava na aldeia não dava trabalho nem de comer a ninguém. A receção da carta foi um acontecimento. Deu azo a uma festa. Os Grossos e os Bechigas comemoraram noite dentro com cerveja, e perto da meia-noite meteram-se na carroça para levar o Zé Grosso ao apeadeiro para apanhar o comboio correio que o levaria à capital, e daí apanharia o barco para Buenos Aires. Sairam sem se despedir, com o macho a quatro. Desceram a encosta da pedreira e, na curva ao fundo da estrada, apertada a noventa graus, o macho escorregou, a carroça virou-se e cairam todos. Já não apanharam o comboio nessa noite. Quando voltaram, pensaram que já tinham ido e regressado da Argentina e já nem português sabiam falar. Tal foi o tamanho da bebedeira.
1947, junho
As noites estavam quentes e os miúdos dormiam no meio do campo. Perto das 23 horas, uma mulher de branco – uma bruxa, pensaram – passou a correr pelo campo. Já não era a primeira vez que a mulher de branco fazia as suas aparições nas noites quentes das terras circundantes da aldeia. Os miúdos, com medo, voltaram para casa e ajudaram a espalhar a lenda da mulher de branco. Uns tempos mais tarde soube-se que o António Grosso andava a comer a Maria Guerreiro, que saia de casa à noite, de combinação, assim que o marido adormecia.
1949, julho
O Aníbal chumbou o ano. O trabalho do campo era mais importante que a escola. O futuro do cavaquinho era trabalhar no campo a ajudar a família. A escola era uma inovação, uma brincadeira sem sentido nem futuro.
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