excepção

Não costumo falar aqui da minha vida. Hoje vou abrir uma excepção. Fui de férias. E encontrei uma data de velhos. Inclusive alguns daqueles que já não sabia se ainda existiam. Os velhos ficam felizes por reencontrar os familiares. E gostam de conhecer as crianças. As crianças não lhes ligam nenhuma. E não compreendem metade do que se diz. Felizmente.

O primo C. está com 75 anos. Não o via há 20. Vivia de apanhar percebes, polvos e sapateiras na maré. Dava-nos sempre uma garrafa de bom medronho. Arranjou uma casa na cidade. Meteu lá 3 mulheres. Viveu uns anos assim. Depois fartou-se. Não se aguenta uma casa com 3 mulheres. Teve que correr com elas. Agora tem uma vida descansada. Não quer saber de mulheres. Quando lhe chega “a vontade” faz “assim”. E mostrou do que se tratava com um gesto amplo da mão.

O tio-avô R. está com 76 anos. Não o via há 30. Trabalhou na alemanha. Trabalhou numa casa de frangos. Fazia frangos no espeto. Já anda agarrado a uma bengala. Dorme todas as noites ao relento. Para não lhe roubarem as galinhas. Catorze. E fala da vida de cada uma das suas galinhas como outros falam do seu cão ou do seu gato. Veio ter comigo com algum esforço que as pernas já não ajudam. E disse-me que era para saber em que adulto é que me tinha tornado. De bónus, conheceu uma sobrinha-neta. Obrigado, tio. Da próxima vez vou lá buscá-lo.

O bisavô B. está nos quadros que estão pendurados nas paredes. São os diplomas do Instituto de Socorros a Náufragos. Os tais que lhe agradecem por ter salvo mais de uma dúzia de marinheiros naufragados. Salvos a nado e preso com uma corda nos dentes. Também ele esteve naufragado. Safou-se em cima dumas tábuas e a comer peixe cru. Na juventude largou fogo ao bigode de um espanhol. Depois tornou-se um homem de bem.

O avô D. está com 73 anos. E com 125 kg. Não espera por ninguém para almoçar. E é sempre quem fala mais alto. Continua a contar que aos 67 ainda aviou uns assaltantes no metro de Paris. E aos 70 ainda aviou um balde de metal nos cornos dum malfeitor com menos 30 anos. Percebe-se que o próximo desgraçado será bem-vindo. Afinal de conas, dá sempre uma boa história. Continua a desafiar os jovens para fazerem braço de ferro com ele. Os jovens escusam-se discretamente.

come on children
we have visits
let’s pretend we are normal

ou, no original: “Remember, as far as anyone knows, we’re a nice normal family”


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Comentários

3 comentários a “excepção”

  1. Avatar de Teresa
    Teresa

    Já és um escritor. E estás, discretamente, a tornar-te um escritor de romances.
    Mas é só quando falas da tua vida.
    Gostei muito.

  2. Avatar de alex

    “gesto amplo da mão”, um gesto semi-circular, suponho.

    Quanto ao braço de ferro, vai para o caralho, eu tinha-o vencido, mas não o quis deixar mal à frente dos descendentes… isto apesar dele pesar 5 vezes mais do que eu… e de cada braço dele fazer duas das minhas pernas…

  3. Avatar de transmutante
    transmutante

    Sim, era um gesto desses.
    🙂

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